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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

ÓDIO AO ANÃO ( Um conto de Eduardo Schloesser sobre um fato ocorrido no ano de 1984 )

O soldado Bananeira colocou as mãos em concha e as deixou encher de água. Molhou o rosto tentando aliviar tensão e fadiga. Encarou a face indesejada no espelho sujo daquele sórdido banheiro público. Definitivamente ele odiava a própria cara, não porque fosse feio, ele não era, embora isto pouco importasse, mas anos de castigos e humilhações tornava-o estranho a si mesmo, nunca ter se revoltado contra todos os abusos tornava-o seu pior inimigo.

Tudo começava pelo nome. Edvardo Bananeira. Isto mesmo, Edvardo. O imbecil do escrivão errou uma letra do seu nome quando foi registrado, trocou o U pelo V e condenou-o a uma infância recheada de chacotas. O Bananeira provinha do pai. Um nome a ser orgulhar dizia o genitor. Nome de político poderoso da República Velha. Só não disseram isto para os amiguinhos da escola, nem aos professores que a custo continham o riso. E porque riam do Bananeira? Pereira e Oliveira também não eram nomes de árvores?

Não era privilegiado em altura, mas tinha um físico poderoso, trabalhado com muito suor e pesos na solidão de seu quarto. Media 1,68. Três centímetros a mais que o Franco Columbo, um dos mais famosos fisiculturistas de seu tempo e considerado um dos homens mais fortes do planeta. Por alguma razão isto não diminuía seu sentimento de inferioridade. Pra piorar, aos 23 anos, o único emprego que conseguiu arrumar para escapar da pecha de vagabundo foi como soldado da Polícia Militar. Um ambiente opressivo e cruel para aqueles com tamanhas deformidades na alma.

Olhou o relógio que trazia no pulso direito, dez da noite, faltavam ainda duas horas até à sua rendição. Quando chegasse ao quartel, pelo menos uns vinte minutos até devolver os acessórios do seu fardamento. Depois, aguardar o demorado ônibus que o deixaria em casa, onde finalmente poderia dormir, o único momento em que encontrava algum sossego.

Ele apertou os punhos molhados com força, flexionou um pulso para dentro, o que se viu foi um antebraço musculoso, como se por debaixo da fina pele morena houvessem nozes lutando para sair. Ajeitou o braçal apertado no volumoso braço esquerdo onde se lia PM com grandes letras negras, pegou o capacete branco, equilibrou-o na cabeça e saiu do banheiro que ficava na plataforma intermediária da Rodoviária de Brasília.

O posto da Policia Civil ficava quase ao lado dos banheiros, e na pequena sala que contava apenas com uma mesa e algumas cadeiras, o cabo Cocada, seu parceiro de P O (policiamento ostensivo) o aguardava com ar impaciente. "Demorou muito novinho, e se fôssemos chamados para alguma ocorrência?" disse o veterano. Bananeira nada respondeu, o cabo levantou-se com ar cansado, reclamando de dor nas pernas, "Malditas varizes", vociferou ele, e serviu-se de mais um café. Haviam dois policiais civis no ambiente, um deles falava ao telefone, o outro, a quem chamavam de Trattor, argumentava que aquela noite estava tranquila, coisa rara nas noites da rodoviária do Plano Piloto.

Rezava a lenda, que quando coincidia de estarem juntos num mesmo serviço, o agente Trattor e o cabo Cocada, todos os meliantes da rodoviária, desapareciam como que por mágica. Era sabido que os dois não davam folga para os vagabundos. Agiam com rigor extremo.

Para Bananeira, de todos os parceiros com quem saía a serviço, Cocada era o mais agradável. Era um nordestino alto de cabeça grande e redonda, orelhas de abano e bigodinho ralo, tinha uns cinquenta anos. Vivia dizendo que mais de trinta anos na polícia nada lhe trouxera de vantagem, aconselhava ao jovem soldado que estudasse e procurasse algo melhor na vida.

A primeira vez que trabalharam juntos foi exatamente ali na rodoviária; quem passa apressado todos os dias pelo lugar não imagina o pandemônio que é. Numa noite, um menino que não devia contar ainda oito anos de idade, dormia em posição fetal com os joelhos dentro da camisa. O cabo cutucou-o energicamente com a ponta do cassetete. O garoto ainda de olhos fechados gritou uma torrente de palavrões, o PM redobrou a força dos cutucões, "Levanta daí moleque, aqui não é lugar de dormir". Raivoso o pequeno virou-se com uma gilete em punho, foi quando o guri viu de quem se tratava, de preto ele ficou branco. Sem dizer palavra, levantou-se apressado e sumiu na escuridão do gramado em direção à Torre de TV, não sem antes deixar a lâmina ali no chão. "Acha que fui muito duro com aquele moleque, novinho? Saiba que já testemunhei muitas barbaridades cometidas por pirralhos como este, quando juntam dois ou três deles, roubam as pessoas nas filas de ônibus; velhos e moças são suas presas favoritas. Há tempos atrás, mataram uma senhora que veio de Taguatinga fazer compras no Conjunto Nacional, ela acabava de sair do ônibus e os moleques puxaram sua bolsa, na ação ela caiu e foi parar embaixo das rodas do veículo que dava a partida. Não vou permitir que façam das suas enquanto eu estiver policiando este local". Edvardo Bananeira admirava o parceiro, não haviam muitos policiais como ele. A maioria era omissa, outros eram bandidos de farda.

Realmente, a noite estava calma até demais. O tempo não passava. Olhou o relógio. Dez e quinze.

O jovem militar, fora do posto policial, olhou o horizonte à esquerda de onde estava e divisou a beleza da arquitetura da Esplanada dos Ministérios emoldurada pela janela empoeirada no fim do corredor. Um espetáculo sempre impressionante.

"É novinho, dê-me mais dez minutos e vamos sair pra outra ronda." disse o cabo entre as goladas de café. Mal acabou de falar, um sujeito esbaforido adentrou à sala:

"Senhores, por favor, há um sujeito lá embaixo, numa das lanchonetes, espantando os fregueses, xingando todo mundo, bebendo as cervejas dos clientes."

"Puta que o pariu, gritou o agente Trattor, tava bom demais pra ser verdade! Vocês PMs deem um jeito nisso, se eu for até lá mato esse desgraçado!"

"É com você novinho, minhas pernas estão me matando, é só você aparecer lá com este físico de Hércules que ele sai correndo!" asseverou o cabo.

"Ok, vamos lá."

O homem e o soldado desceram os íngremes degraus da escadaria e numa das últimas pastelarias, um indivíduo grotesco, com roupas encardidas, fedendo horrivelmente, pegava os copos de cerveja dos clientes nas mesas e bebia, desafiando a todos. Assemelhava-se a um anão, mas de grandes proporções, sua cabeça era pelo menos um terço do corpo, os ombros eram desproporcionalmente largos, braços atarracados, mãos enormes, pernas valgas e curtas. Quando se movia, não dobrava os joelhos. Devia medir um metro e cinquenta.

O PM Bananeira chegou com decisão:

"Vai circulando vagabundo!"

O anão, olhou para ele com desdém, "Vai tomar no cu, seu filho da puta, essa tua farda não te dá autoridade pra falar assim comigo!", gritou.

Diante daquela resposta ríspida na frente de todos, o jovem policial ficou sem reação, não lhe veio argumento ou atitude, parecia que o corpo musculoso ou a arma no coldre não serviam de nada.

Neste preciso momento chegava o cabo Cocada.

"Mãos na cabeça, marginal!"

"Vai tomá no cu, você também, vocês PMs são todos uns covardes de merda!" Berrava o vagabundo.

Muito rápido pra alguém da sua idade, o cabo agarrou o anão pelas orelhas imundas, sacudiu de um lado para outro e empurrou para trás, o infeliz caiu batendo a cabeçorra com grande estrondo no chão de cimento.

Bananeira, perplexo, olhou em volta, a multidão que se formou ao redor da desagradável cena olhava espantada. "Merda, pensou, já vai aparecer um advogado para este mendigo." Era sempre assim, todos pediam auxílio à policia, quando ela agia com energia, dizia que era abuso de autoridade, o meliante passava de vilão à vítima. Mas para seu espanto ninguém se manifestou contrário ao que acontecia.

Caído, o anão ofereceu resistência, os dois PMs lutavam para imobiliza-lo. "Algeme este porra, Bananeira!", disse o cabo entre os dentes. Colocar os braços do bandido atrás das costas para manieta-lo parecia tarefa impossível, acostumado a fazer supinos com quase cem quilos, Edvardo não acreditava no que acontecia. Dois homens fortes não davam conta de um anão?!? Este pensamento fez o jovem redobrar as forças, torcer o pulso grosso do baixinho e finalmente passar as algemas. "Vamos leva-lo para o posto", ordenou o superior. Levanta-lo do chão foi outro trabalho de parto. O velhaco parecia pesar uma tonelada, ainda mais que resistia passivamente, deixando o corpo totalmente mole. Furioso, Bananeira, agarrou no sovaco nojento do biltre, e localizando um nervo ali existente pressionou fortemente com seu indicador. O anão soltou um uivo de dor, e se aprumou. Os policiais o arrastaram em direção às escadarias. Os populares aplaudiram a ação.

Foi uma batalha mover o indivíduo. Pesado como era, o cabo parecia que iria desfalecer a qualquer momento, as escadas rolantes nunca funcionavam, tiveram que arrasta-lo para cima com intervalos para descanso. A cena era constrangedora. Os olhares curiosos, faziam Edvardo corar, muito mais de vergonha que do esforço desprendido.

No que pareceu ser um longo tempo, finalmente chegaram ao posto da Policia Civil. Curiosamente o agente Trattor não estava presente. "Ei, este é o cara que tava dando trabalho?", alguém perguntou com ironia. Sem responder, Cocada abriu a pequena cela de uma salinha contígua e jogou o anão dentro dela, entrou e retirou as algemas. Saiu, trancou o recinto. Lá de dentro o marginal bradava: "Filho da puta, vocês policiais são todos uns covardes! Cornos filhos da puta!". Sem conter a ira, o PM abriu de novo a grade, e antes mesmo de apanhar, o safardana começou a berrar, o cabo empurrou-o contra a parede, em seguida desferiu-lhe um potente soco no estômago. O ser macabro agarrou as entranhas e soltou um urro longo e sufocado, seus olhos se arregalaram como se fossem pular das órbitas. Seguidos socos e tapas no rosto levaram o homem ao chão. Edvardo Bananeira saiu dali. Foi buscar ar fresco. Nos filmes, cenas de pancadaria são interessantes, os atores fazem caras e bocas divertidas mesmo que demonstrem realismo. Na vida real, presenciar um indivíduo levar porrada e gritar daquela maneira é um pesadelo dantesco. O cabo saiu da cela suarento, ofegante. No cubículo, o pigmeu gemia chorosamente: "Ai meu Deus , aaaiiii, aaaa... a Polícia Militar tá de parabéns, conseguiram espancar um aleijado! Parabéns policiais! Aiiiii...."

Quem passava do lado de fora ouvia as lamentações. Vexado, Bananeira foi ao banheiro higienizar as mãos, parecia-lhe que nenhum sabão do mundo poderia lava-lo do contato com aquele ser ignóbil, muito menos apagar das lembranças os acontecimentos daquela noite.

Quando voltou ao posto, o liliputiano havia se aquietado. "O safado dormiu, falou um agente, é sempre assim com estes vagabundos, querem parecer vítimas, depois conseguem dormir como se não tivessem causado nenhum transtorno,"

"Que vai acontecer com ele?", perguntou o jovem. "Ah, deixa dormir, amanhã soltamos ele."

"Tá tudo bem aí cabo?"

Cocada mirava a parede com olhar distante, "Porra nenhuma, odeio quando acontecem estas coisas. Ainda acabo tendo um infarto de tanta raiva. Que horas são?"

"Onze e quinze."

"Caralho, ainda faltam quarenta e cinco minutos para a rendição. Que noite de merda!"

Bananeira nada respondeu. Sabia que não poderia levar aquela vida por muito tempo, não fora talhado para estas situações. Naquele momento porém não haviam alternativas. Amanhã era outro dia. Dia de folga. Esta noite ele sabia que não ia conseguir dormir, mas queria viver intensamente o dia de descanso.










4 comentários:

  1. Muito bom o conto, Eduardo. Só tem um problema: quero mais! Os personagens são bem interessantes. Parabéns!

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  2. Opa, obrigado Leandro, eu também queria escrever mais, porém meu tempo parece cada dia menor, e depois, confesso que fiquei meio desapontado com a receptividade do pessoal que me visita. Repare que você é a segunda pessoa a se manifestar, na verdade a primeira a comentar o conto propriamente dito. Paciência. Mas sempre que tiver um tempinho e inspiração pretendo postar uns casos aqui.
    Semana que vem, se Deus quiser, pretendo colocar um conto do Zé Gatão, escrito por um amigo e listrado por mim.
    Abração.

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